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Ah! Religião #1: O Espiritismo e o direito à vida

O Direito à Vida é premissa básica do Espiritismo?





Visto por muitos como direito absoluto e irrevogável por vezes o discurso religioso perde sua humanidade no julgamento das ações humanas.


Quando Kardec, na questão 880 de O Livro do Espíritos, pergunta aos espíritos trabalhadores da Codificação qual o primeiro de todos os direitos sociais do homem, de maneira direta recebe a resposta da Espiritualidade:
“O de viver. Por isso ninguém tem o de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.”[1]


Depreende-se desta resposta um convite a reflexão feita pelos Espíritos da Codificação: como compreender a retirada da vida de um sujeito por interferência desse próprio sujeito ou de outro sobre ele? Por envolver assunto delicado tocante a existência humana, as reflexões sobre este assunto necessitam de clareza e objetividade de raciocínio, mas também sensibilidade em tratar de temas essencialmente vivenciados de maneira dolorosa por vários sujeitos encarnados e desencarnados nas relações que envolvem os processos, evidentes ou aparentes, de atentado a vida. O homicídio, com suas variações de nomenclatura específicas de classe, gênero e sexo entre outras que orientam o crime contra minorias sociais de maneira mais determinada e evidente, consiste crime na maioria dos sistemas jurídicos terrenos na contemporaneidade. A visão de que retirar a vida de alguém consiste em equívoco moral, ético e jurídico, e, portanto, passível de punição terrena, aparece nos códigos terrestres desde a Antiguidade Persa a partir do código de Hamurábi e sustentou a base do judaísmo nascente em Moisés pelo conhecido axioma do “olho por olho”. A nova aliança, trazida por Jesus com a Boa Nova, traz para a equação mosaica a misericórdia divina fazendo os sujeitos compreenderem, por exemplo, a pena de morte como mecanismo de justiça exagerado. Mais ainda, uma simplificação de justiça em igualdade de força e relações, para julgamento e punições, oriunda de consciências ainda em processo de despertamento. Dessa forma, mesmo o homicídio justo da Lei mosaica, passa após Jesus a ser (re)significado pela Lei do amor. Condenar como crime o atentado de um ser humano a vida, por si só, não é fazer mais do que um farisaísmo contemporâneo de se explicitar a lei sem refletir sobre a mesma. E a leitura das premissas espiritas existem para a constante reflexão perante os novos temas que surgem a cada época e não somente para a simples repetição impensada como versículos mortos sem o espírito compreendido sobre a letra. Nesse sentido, torna-se necessário compreender que o tanto o momentâneo homicida, quanto a vítima, são humanos em sua trajetória espiritual e que seus equívocos não representam condenação eterna nos fogos infernais plasmados por mentes, ou línguas, das duas dimensões cognoscíveis. Afinal, o homicida, ou o suicida, são agentes de sua história espiritual que percebem em suas escolhas e decisões, aprendizados. Em uma linguagem espírita, expor estes seres os compreendendo, apenas, a partir dos atos em equivoco aparentemente cometidos torna-se uma grande injustiça. Primeiro, pelo fato de que perante a lei reencarnatória tais sujeitos não são simplesmente “eles”, em um sentido de outro distante do que somos, e sim “nós” mediante nossas lutas e dificuldades. Afinal, não estamos reencarnados por termos conseguidos a beatitude e a santidade, muito pelo contrário. Segundo, porque marcá-los, ou marcamo-nos, em identificação pelos equívocos é mais do que desumano. É crueldade, não condizente com a humanização espirita. Se os erros marcam nossa consciência de maneira decisiva, tal condição já basta esta nossa autoacusação, não necessitando do reforço pouco educativo de falas descaridosas que vinculam seres complexos e de múltiplas experiências a erros temporais cometidos. Na fogueira de julgamento que criamos, conseguir não acusar em julgamento a outrem já é grão de areia de bondade que podemos ofertar em benefício de companheiros de jornada encarnados ou não. Se a defesa a vida é então baluarte do discurso espírita, a condenação social para além da própria consciência do sujeito é ausência de caridade, empatia e situação desnecessária. Nesse sentido, Jesus nos ensina na passagem de Madalena, exemplo da luta feminina sobre a Terra, a não atirarmos a pedra por também estarmos em dia com nossos pecados. E nesse viés de relação entre vida e feminino da passagem evangélica, torna-se fundamente discutir a questão da interrupção da gravidez na contemporaneidade de maneira essencialmente humana ao refletirmos sobre todos os aspectos da vida. É inegável que a Doutrina Espírita trata, a partir de seu escopo doutrinário, a defesa da vida como valor intrínseco dos direitos naturais básicos, mas falar do difícil processo de interrupção da gravidez por uma mulher não é falar apenas sobre fetos, ou espíritos em processo de reencarnação, que não alcançaram a vida pelo processo de interrupção da gestação. É preciso também falar sobre mulheres, sujeitas historicamente invisibilizadas nas sociedades que conduziram o processo evolutivo nos mais diversos cantos do planeta. Nesse sentido, a defesa metafisica intransigente da vida feita pelo Espiritismo precisa dialogar com o feminino portador do sagrado fenômeno de uma concepção, da gestação da matéria da vida. E Kardec deixa claro, nas questões da sessão 470 a 474 de O Livro dos Espíritos, às necessidades de tratamento específico em cada caso que trata da retirada da vida em situações diferentes. No sentido da relação entre feminino e vida, não é à toa que a figura de Maria é essencial para o Cristianismo. Não existe vida que não seja resguarda pela maternidade. Se não respeitarmos as variadas e complexas relações e dimensões da relação entre feminino e vida, nosso comportamento muito se assemelhará aos dos sujeitos que jogavam pedras sobre a feminilidade de Maria de Madalena, algo que Jesus ,de maneira educativa e questionadora, impediu a partir de seu questionamento reflexivamente filosófico sobre o “atirai a primeira pedra”. No sentido epistemológico, não existe o fenômeno da interrupção da gravidez em si de maneira isolada, mas, sim, mulheres que eticamente precisam lidar com o conflito da vida nascente em seu corpo, as vezes de maneira indesejada, violentada e ou forçada. A maravilha e a dor, o sublime e o sexual que se manifesta por, e para, cada um dos seres encarnadas nessa experiência de gênero. A condenação, ou até mesmo a criminalização moral, resultante da nossa ótica espiritualista de mundo, em nada ajuda no processo de compreensão e discernimento sobre a realidade espiritual na Terra. Pelo contrário, evita-se, com tais discursos menos compreensivos da complexa realidade humana do sujeito encarnado, um Espiritismo que atue em seu papel de Consolador terreno. A luta pelo direito a vida espírita precisa estar coadunada com a diretriz cristã do amai ao próximo. Se possível, como Jesus nos amou e não perante nossas cristalizações morais sobre os ensinamentos espirituais que aprendemos e burilamos através do tempo e de nossas experiências encarnatórias. Por isso Jesus ama entregando-se ao sacrifício e não exigindo que outros os façam, nem mesmo em seu nome. A chave da iluminação cristã está no auto despertar de consciência através do reconhecimento da essência divina que nos habita, e não nas condenações morais que, porventura, levianamente realizamos. É nesse sentido humano de percepção das complexidades sobre as relações de vida e morte que Kardec questiona os Espíritos sobre processos que podem retirar a vida de outrem. Na questão 744 de O Livro dos Espíritos, por exemplo, quando o Codificador trata sobre os processos de culpabilidade humana em relação ao fim de uma vida, a resposta espiritual é a de que “Deus é Justo e julga mais a intenção do que o fato”. Como cristalizarmos de maneira clara a acusação de um crime a alguém que julgamos em desacerto se não compreendemos as motivações íntimas que levaram os sujeitos a tomarem as mais variadas decisões a respeito sobre a vida? Quantas certezas temos em terrenos íntimos onde pairam tantas dúvidas. Por isso para qualquer assunto que o Espírita identifique, a partir de suas experiências, como crime aos seus olhos cabe mais o sustento do caminhar junto nas lutas encarnatórias, do que o dedo apontado sobre o erro. Se a dignidade humana nos obriga a uma defesa firme da vida, o respeito, a honestidade e a inteligência íntima da conexão divina que habita em nós, força-nos a abrir mão do tom acusatório da defesa de nossos valores para juntos construirmos a sociedade que respeita os limites de cada indivíduo, bem como considera a diversidade de visões do ponto de vista político-social-religioso, antes da imposição dos nossos. Se a dignidade do nosso olhar não conseguir incluir àqueles que condenamos, o que estamos fazendo de diferente com toda moral cristã apreendida e a realidade espiritual desvelada aos nossos olhos? Tornamo-nos essencialmente humanos ao tratar eticamente as questões que nos afetam os princípios. Se ainda não alcançamos tal condição temos que rapidamente desenvolver tal habilidade para dar conta de todos os desafios humanos da contemporaneidade. [1] O Livro dos Espíritos » Parte Terceira - Das leis morais » Capítulo XI - 10. Lei de justiça, de amor e de caridade » Direito de propriedade. Roubo .


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